A frase de Sartre nos inspira aqui. Sempre podemos fazer algo de nós mesmos a medida que nos localizamos das nossas determinações históricas e de nossas possibilidades. Um processo psicoterapêutico fundamentado na psicologia existencialista deverá viabilizar isto.
É certo, no entanto, que um processo psicoterapêutico envolve bastante investimento, tanto financeiro quanto de tempo. Todos(as) que vivenciam uma psicoterapia podem testemunhar isso. Mas, podem testemunhar também as conquistas que a mediação de uma psicoterapia viabiliza. E é sobre isso que eu gostaria de refletir. Especialmente sobre a superação da exaustão pelo trabalho.
São muitas as pessoas que chegam até mim contando situações de crise de pânico, episódios de ansiedade e também de depressão relacionadas a suas atividades laborais. O relato mais clássico é: a) desesperar-se ao chegar nas instalações, edifícios ou instituição onde trabalha e chorar muito, as vezes pensando que seria melhor não viver mais do que permanecer trabalhando naquele lugar; b) taquicardia, tremor, contração de membros ou musculatura da face sem entender muito bem o que lhe acontece; c) perder a vontade de realizar as atividades laborais das quais antes gostava, e, a reboque ir perdendo o interesse pelas demais atividades tanto de lazer quanto hobbies. O que fazer diante disso?
Inicialmente é necessário compreender o problema. O fato de uma trabalhadora ou um trabalhador sofrer pelo seu trabalho não significa que ela ou ele entenda esta relação. Por isso, faz-se importante descrever o contexto de trabalho a partir da experiência concreta do sofrimento, isso é, as situações em que a crise ou os episódios ocorreram.
Algumas características das atividades laborais que geram sofrimento psíquico relacionado com o trabalho são recorrentes. Por exemplo: metas que extrapolam a condição do ser humano em atingi-las serem parâmetro para as cobranças e avaliações da trabalhadora ou trabalhador; relações hierárquicas e entre os pares com um clima de abuso e assédio; ritmo acelerado de trabalho extenuando-se psiquicamente e fisicamente. Parece fácil chegar a tais caracterizações, mas quando se trata da nossa própria existência e das nossas próprias relações de trabalho não é tão fácil assim não. Mas, quando a compreensão ocorre uma certa libertação torna-se possível, pois os meios de agir tornam-se mais claros. Afinal, a compreensão de uma situação serve para que se possa agir e superá-la, não é mesmo?
A conquista de uma vida melhor torna-se possível. Mas quando o sofrimento chega a exaustão pelo trabalho, geralmente, a pessoa chega a psicoterapia bastante insegura, com dificuldades em posicionar-se diante dos outros, muito triste, desqualifica-se bastante como profissional mas também em outras dimensões de sua existência, às vezes não sente mais sentido em viver. Precisamos, então, ter foco no processo psicoterapêutico. Descrever muitas situações até que novos posicionamentos sejam construídos. Em geral, uma mudança radical de vida, mudança de emprego ou local de trabalho vai ocorrendo a medida que uma nova visão de perspectiva de futuro se preserva.
A conquista de uma vida melhor pode passar certamente por acertos financeiros. Mas, fundamentalmente, pela experiência de ser quem deseja ser com as mediações para isso e, também, de desenvolver as atividades mediante as quais se realiza como profissional. O fato é que as dificuldades no trabalho desestabilizaram outras relações, sejam amorosas sejam entre amigos(as), inviabilizaram a condição de concentrar-se para ler ou estudar, entre outros projetos. Esse esclarecimento é importante para que as expectativas diante de um processo psicoterapêutico estejam alinhadas à realidade, isto é, um processo que se desenvolve ao longo de várias sessões de psicoterapia.
Por que muitas pessoas optam por mudar de emprego ou de local de trabalho? Basicamente pelo seguinte, as relações no contexto em que a pessoa adoeceu estão, em boa parte ou pelo menos no que concerne a ela, degradadas. Isso significa que os seus posicionamentos individuais não são suficientes para lidar com uma estrutura e cultura organizacionais adoecedoras. Assim, muitas pessoas optam por mudar de emprego ou local de trabalho ou, até mesmo, quando é possível para elas, concentrarem-se na aposentadoria. De outro modo, quando as relações no contexto de trabalho não estão degradadas as pessoas conseguem posicionar-se na hierarquia ou diante de seus colegas de trabalho, auxiliando-os a localizarem-se diante das questões problema. É certo que, para escolher com segurança é preciso localizar-se e é justamente isso que a psicoterapia poderá mediar.
A frase de Sartre retirada do livro Saint Genet - ator e mártir, segue aqui completa, bem como sua contextualização.
"Serei o ladrão".
"Colhido por um olhar, borboleta espetada num pedaço de cortiça, ele está nu, todos podem vê-lo e escarrar nele. O olhar dos adultos é um poder constituinte que o transformou em natureza constituída. Agora, é preciso viver; no pelourinho, com o pescoço no garrote, é preciso viver: não somos barrões de argila e o importante não é o que fazem de nós mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós. Pela opção que tomaram sobre o seu ser, as pessoas honestas coagiram uma criança a decidir prematuramente sobre si mesma, podemos adivinhar que essa decisão será capital. Sim, é preciso decidir, e matar-se também é decidir. Ele escolheu viver, disse contra todos: serei o Ladrão. Admiro profundamente essa criança que se quis, sem hesitação, na idade em que estamos ocupados apenas em macaquear servilmente, para sermos agradáveis. Uma vontade tão feroz de sobreviver, uma coragem tão pura, uma confiança tão louca no seio do desespero darão seu fruto: dessa resolução absurda nascerá, vinte anos depois, o poeta Jean Genet." (2002, p. 61)
Sartre escreve a biografia e analisa a constituição de Genet como escritor. Localiza, em sua infância uma escolha capital, viver. Sob o olhar das pessoas "honestas" foi referido como ladrão, aos 10 anos, mais ou menos. Fez algo de si mesmo, ladrão, poeta e mais tarde escritor. Mas foi esse olhar do outro que na infância e em outros momentos da vida pode tornar-se natureza constituída, que constrangeu Genet em escolher viver ou morrer. Neste ponto, importante marcar, trata-se das possibilidades vividas por Genet em seus contexto, partindo de uma situação concreta, por exemplo, aquela em que foi pego roubando. Traduzimos esse movimento dialético de análise que faz Sartre para o processo psicoterapêutico de modo geral. Neste sentido, para nós é muito importante localizar a frase que utilizamos como inspiração, para mostrar que não se trata de uma vontade abstrata fazer algo de si, mas da premência em escolher-se.
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