Desejo de ser na psicoterapia existencialista
- Andréa Luiza da Silveira
- 28 de fev. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 30 de abr. de 2024
Conhecer o método de trabalho e o Código de Ética Profissional é um direito do cliente ou paciente em processo psicoterapêutico. Você pode encontrar facilmente a resolução Nº 13, de 15 de junho de 2022, do Conselho Federal de Psicologia – CFP – que Dispõe sobre diretrizes e deveres para o exercício da psicoterapia por psicóloga e por psicólogo.
Aproveito que o CFP acentua, mais uma vez em 2022, a importância do esclarecimento do paciente ou cliente, sobre a fundamentação teórica e o método científico do seu próprio processo psicoterapêutico para abordar, neste ensaio, a noção de desejo de ser na psicoterapia existencialista. Afinal, a noção desejo de ser é fundante da psicoterapia existencialista com a qual trabalho.
Esta é uma noção sempre presente para a(o) psicoterapeuta existencialista. Entretanto, somente ao longo do processo psicoterapêutico torna-se uma questão para o(a) paciente. Vejamos. Inicialmente estamos conectados ao mundo pelo fazer: mamar, comer, engatinhar, andar, falar. Muitos(as) do nós acorda e faz a cama, isto é, arruma os lençóis e a coberta, os travesseiros etc. Faz o café da manhã ou o dejejum, faz as suas atividades na escola ou no local de trabalho. E assim por diante. Faz amor, faz uma canção ou uma poesia, faz marcenaria, faz comida... Raramente questionamos qual o desejo implicado naquilo que fazemos. Pois, o que fazemos nos aparece muito mais como necessidade ou, até mesmo, obrigação. Tem que ser assim. Deve ser assim. Aprendi assim. Sempre foi assim.
O sentido da ação é uma questão para o processo psicoterapêutico. Normalmente, leva algum tempo para que esta questão seja colocada de forma clara pelo paciente. De fato, que o paciente compreenda os sentidos de suas queixas iniciais, isso é, àquelas que o(a) levaram a procurar uma profissional de psicologia. Que relacione tais sentidos àquilo que faz. Que observe as consequências. E que ponha claramente para si seu desejo de ser.
O desejo de ser, de modo mais amplo, envolve escolhas referentes ao modo de viver. Iniciar estudos para uma vida profissional. Mudar de carreira. Casar-se. Separar-se. Ter um filho(a). No cotidiano, tais opções implicam um ser que está sempre por tornar-se. Ser profissional de.... Ser esposa(o)... Ser pai ou mãe... Ser solteira(o)...
O desejo de ser envolve certas qualidades que, como tais, precisam ser realizadas no cotidiano. Mudar de carreira, por exemplo, pode exigir aplicar-se em estudar. Para apreender algo novo terá que estudar durante horas. Mas não tinha este hábito de ficar tanto tempo estudando anteriormente. Então, mudará sua rotina para que este estudo seja possível. Terá que se concentrar para que este estudo seja proveitoso. Neste caso, a pessoa pode autoreferir-se como determinada: tenho que ser determinada para poder empreender este estudo. Deste modo, nos posicionarmos oferecendo-nos uma perspectiva de futuro. Desejo ser uma pessoa dedicada à... meus relacionamentos, minha carreira, meu modo de vida, política, comunidade, ganhar dinheiro.
Os matizes de um desejo de ser são muitos, uma infinidade de possibilidades. Quando afirmamos que cada um de nós é único, em parte, é a isso que estamos nos referindo. O desejo de ser vai surgindo como uma questão no processo psicoterapêutico ao mesmo tempo que vai se compondo e recompondo. Não está dado, não se solidifica e tão pouco é determinado ou determina.
A psicoterapia existencialista fundamenta-se no método dialético. Avança em espiral. E, como toda espiral passa pelo mesmo ponto algumas vezes. A realização do desejo de ser num projeto de ser exige uma dinâmica em que a reflexão crítica sobre as situações vividas seja uma prática frequente, pois ela não finda. Esta aprendizagem constitui um movimento desenvolvido no próprio processo psicoterapêutico. Justamente por isso ocorre ao longo do processo em vez de no seu início.
As referências do paciente no início de seu processo psicoterapêutico são, em geral, aos seus sofrimentos. As vivências relatadas, narradas e descritas são carregadas de sofrimento. À medida que novas experimentações ocorrem novos sentidos para a ação vão surgindo. Ou ainda, à medida que o paciente age de novos modos novas experimentações, mais realizadoras, mais felizes passam a fazer parte da vida do(a) cliente.
A compreensão de seu próprio processo está ligada a vivência de desejar. Trata-se de uma experiência na relação com o mundo como operável. Como lugar onde as coisas estão organizadas, sejam elas materiais ou simbólicas. Um lugar é permeado pelo sentido. Um lugar terá significados dados de antemão, pois possui sua própria historicidade. Mas um lugar também será reinventado. Caberá nele novos significados.
A realização do desejo de ser imprime, nos nossos lugares, novos significados. Ao apreciarmos o passado, muitas vezes, fazemos aparecer significados que não tinham sido observados antes. Mas, só o fazemos porque eles estavam lá. Prontos. A nossa presença no mundo viabiliza novos significados. Oportuniza, igualmente, passagens por diferentes pontos deste movimento dialético que é a nossa vida.
Como assinala Simone de Beauvoir em seu livro Por uma moral da ambiguidade, existir é falta de ser e é na relação com o mundo que damos sentido a nossa existência. Recusar essa falta, para ela e para nós que nesta autora nos fundamentamos, é negar a própria existência, é recusar o movimento dialético que é a vida. Assim, afirmamos a existência agindo no mundo, nos comprometendo com nosso desejo de ser na nossa ação diante das possibilidades e com os outros.
Comments