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Biografia e futuro do passado no filme Arábia

Atualizado: 6 de mai. de 2024


Na Psicoterapia Existencialista operamos tanto a noção de biografia quanto a de futuro do passado. Ambas podem ser observadas no filme brasileiro Arábia (2017). Assisti pela última vez quando foi exibido pelo projeto de extensão universitária Interações, num cine debate (04/2024), ocasião em que mediei uma excelente discussão realizada por estudantes e professores do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fronteira Sul. Aproveito, então, para fazer uma análise do filme, com o recorte destas duas noções.

Todos nós temos uma história para contar, foi o que Cristiano (Aristides de Sousa), personagem que protagoniza o filme Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans) entendeu enquanto escrevia sobre acontecimentos marcantes em sua vida. Registra sua biografia, enquanto reflete sobre situações e faz certas elaborações ainda bastante iniciais. No lugar de quem assiste, fiz minhas próprias elaborações. O filme é uma obra de arte. Ele embeleza a vida triste dos personagens, na maioria dos contextos, oprimidos sem revolta.

Cristiano cresceu sem laços familiares, mas fazia amigos pelo caminho, migrando em busca de trabalho pelo Estado de Minas Gerais. Inicia sua narrativa afirmando que contaria sobre sua trajetória até conhecer Ana (Renata Cabral). O período que passou com ela foi o mais feliz e completo de uma vida em que imperava a pobreza e o esforço em trabalhos precários.

Após tê-la deixado, perdeu definitivamente suas perspectivas. Mesmo assim não desistiu, conseguiu um trabalho honesto por meio do amigo que conheceu quando esteve preso. Um deslise da juventude o levou a prisão, onde jurou nunca mais voltar. A fábrica, onde o trabalho era extremamente pesado e extenuante, tinha um grupo de teatro, ao qual Cristiano fazia parte. A escrita que se dedicou foi uma tarefa deste grupo.

Sofre um acidente de trabalho, justamente quando percebe que não vivia. O som da fábrica sumiu, ao seu redor só havia silencio, sentiu o seu corpo, as suas dores e o bater do coração. Por que estava ali? Vendia sua força de trabalho por um teto e pão. Era o que poderia pagar com seu salário.

Enquanto jazia entre a vida e a morte no hospital velado por uma amiga, Assistente Social de seu bairro - um mundo a parte da linda cidade de Ouro Preto – André (Murilo Caliari), sobrinho da amiga vai a casa de Cristiano buscar roupas, pois era provável que logo teria alta. De repente, Cristiano não resiste, quando André retorna ao hospital com os pertences, não o encontra vivo.

O diário de Cristiano foi encontrado por André. Naquela noite, sem conseguir dormir e ainda em posse das chaves, vai até a casa. São os olhos de André que retratam essa história. Ele vê Cristiano, que também o vê. Relata na sua escrita o jovem solitário que encontrava pelo bairro sem atrativos para um adolescente. André morava com o irmão mais novo, que sofria de uma doença respiratória, provavelmente, em consequência da poluição da fábrica. Os pais nunca estavam em casa e as crianças cuidavam uma a outra sob a supervisão da tia.

O filme retrata a vida de um homem da classe dos trabalhadores. Cristiano, um homem gentil, que não sabia amar. Aprendeu com Ana. Afastou-se dela. Quando ouviu seu próprio coração, morreu. As possibilidades que tinha perderam-se no passado. Ana foi uma contingência na vida de Cristiano. Ele não tinha sonhos, não fazia planos, não buscava um relacionamento amoroso. Com ela pôde experimentar-se amante e amado. No entanto, diante de dificuldades afetivas, quando ela conta a ele que perdeu um bebê que nenhum dos dois sabia que estava a caminho, entristecem-se. Não houve tempo para recuperarem-se, Cristiano foi embora novamente, outra cidade, outro trabalho, o mesmo destino.

O filme apresenta com sensibilidade uma biografia. A história de uma vida rumo a um futuro. Ao terminar o filme perguntei-me se ele teria voltado para Ana, pois ele recebe uma carta dela, afirmando que o esperava. Por que ele foi embora? Parece-me que Cristiano, ao longo de sua biografia, experimentava-se sem lugar no mundo. Era preciso modificar aspectos de sua dinâmica de personalidade, deste modo, agiria para encontrar Ana, acolher a perda e forjar perspectivas. É o futuro do passado, grosso modo, as possibilidades que existiram em certas situações. Entretanto, após sua morte, não há mais possibilidades.

A alienação profunda de várias atividades remuneradas realizadas no universo do trabalho é demonstrada no filme. É esperado que numa sociedade que se organiza pela alienação viva-se alienado de si mesmos e dos outros. Em alguma medida isso pode ser superado. Afinal, pode-se encontrar um oásis no deserto, que é imenso. A psicoterapia com a qual trabalho, de certa forma, é a busca deste oásis. Um processo de desalienação para lidar com a própria história e possibilidades.


Obs.: a imagem é uma quadro de Eugênio Sigaud, 1944.

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