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Compulsão alimentar e obesidade no filme A baleia

Atualizado: 13 de abr. de 2024

A compreensão sobre a condição do personagem Charlie do filme A baleia será apresentada sob a perspectiva da psicologia existencialista e partirá da experimentação constituída pelos aspectos sociológicos e antropológicos revelados durante as cenas. Estrelado por Brendan Fraser e dirigido por Darren Aronofsky, rendeu ao ator o óscar, além de colocar a compulsão alimentar e a obesidade como questão em evidência. O roteirista e dramaturgo Samuel Hunter, escreveu a peça que baseou o roteiro de A baleia

ao refletir sobre suas próprias vivências num dado contexto de sua trajetória pessoal. O que levou Hunter a escrever A baleia e evidenciar a homossexualidade, o abandono e a obesidade que levaria a doença e a morte foi a pergunta sobre si mesmo: se não tivesse recuado e continuasse com a compulsão, o que poderia ter ocorrido? Hunter projetou Charlie.

O cotidiano de Charlie é revelado nas primeiras cenas quando ouvimos um trecho de sua aula on-line sobre o desenvolvimento de textos. A tela do computador mostra que durante a aula somente sua câmara está desligada. A vergonha de sua aparência, questionada por ele muitas vezes como “nojenta”, é demonstrada pelo gesto de esconder-se e por desculpar-se, o que também faz com frequência. Logo a intimidade de Charlie vai sendo desvelada, sentado na sala de seu apartamento masturba-se ao excitar-se observando na tela de seu computador, uma cena sugestivamente sexual entre dois homens. Leva a mão ao peito e ofega, tenta alcançar o celular que escapa de suas mãos e cai, então, pega uma pasta transparente que estava ao seu lado, retira duas folhas e tenta uma leitura em voz alta. Trata-se de uma redação sobre o livro Moby Dick. Um jovem bate a sua porta, ele pensa que é Liz, sua amiga e enfermeira, diz a ela que entre, mas, em vez dela, o jovem recém chegado naquela cidade entra em seu apartamento. Novamente um olhar diante de Charlie que vê somente a obesidade e a homossexualidade a serem julgados. Charlie pede que ele leia a redação e acalma-se. Ele queria ouvir a redação pela última vez, pois pensava que estava morrendo.

Ser professor, o desejo sexual, a doença, a amizade, a contingência e a morte denotam a ambiguidade da existência de Charlie. A dificuldade de movimento, locomoção e a morte iminente por um lado e a sexualidade e a realização de seu ser profissional e o futuro da filha por outro. Ele morreria sozinho se o acaso não levasse o jovem missionário à sua sala? As primeiras cenas revelam, mas também deixam significações a serem desveladas. O que acontece com ele, o que pensa e sente para que a redação seja tão importante a ponto de ter efeito calmante sobre ele? De fato, ele está prestes a morrer e não considera uma alternativa ir ao hospital, pois acumularia ainda mais dívidas. Ele sabia que sua morte era uma questão de dias e se havia medo, não parece preocupar-se. Afinal, tudo indica que o futuro que desejava foi perdido com a morte de Allan, seu grande amor e irmão de sua amiga Liz, por quem deixou a esposa e a filha de 8 anos.

A filha que o adorava foi abandonada e impedida pela mãe de ter a presença de Charlie em sua vida. Ele, no entanto, desrespeita pela primeira vez em 9 anos a vontade da mãe e telefona a filha Elie. Este ato foi uma escolha que nos mostra Charlie diante de si mesmo. Tem redações a corrigir, talvez seja isso o que estava fazendo naquela manhã. Após comer uma tigela de algo que não consegui identificar, abre gavetas e descobre barras de chocolate. Abre, pega o chocolate, volta a pôr na gaveta. Está decidindo se deve comer ou não? Come. Um pássaro pousa no batente da pequena janela, onde Charlie dispõe um prato com maçã cuidadosamente picada. Ele olha, larga o chocolate e telefona a filha. Uma certa esperança pode ser simbolizada por esse pássaro. A chuva e o tempo nublado compõem com o clima solitário e monótono do apartamento. Ellie não tarda a chegar. Charlie prepara-se, banha-se, barbeia-se e põe roupas limpas.

Ellie tem 17 anos, não vai bem na escola, possivelmente não tem amizades. A mãe a reifica como má. Ela é cruel e cobra o abandono. Ameaça ir embora, mas fica e retorna. Aparentemente, pelo dinheiro que o pai lhe oferece, todas as suas economias e por ele propor-se também a escrever suas redações, o que não faz no fim das contas e ela reprova. No entanto o dinheiro é para ela. É o futuro dela que mobiliza Charlie, é também por ela que ela trabalha todo o tempo, é a redação dela que contém o balsamo que o acalma. Para Charlie a redação é Ellie.

Explica a ela sua obesidade. Conta que sempre foi gordo, mas perdeu o controle com a morte de Allan, perdeu Allan e perdeu Ellie. Para Allan queria ser tudo. Allan que sofria por amar sua religião e ter sido abandonado pelos pais e a congregação após assumir sua relação com Charlie. Allan sofreu com uma anorexia e suicidou-se. Charlie não se entende mais como alguém que valha a pena estar na vida de quem ama. É uma experimentação que parece sustentar a compulsão. Não vale a pena ser vistos pelos estudantes, a quem entrega seu conhecimento e boa parte do seu tempo de vida. Não é sua presença na vida de Elie do que ela precisa quem iria me querer na sua vida, diz ele.

Os significados estão nos gestos, o delicado cuidado com os pássaros, a tranquilidade que na maioria das cenas lida com os conflitos, o posicionamento firme em não ir para o hospital, a comida que escolhe para si, a paciência que lida em geral com Thomas e com Ellie, os anos de economia para reservar um futuro para a filha. Mas, em geral, o que é observado é apenas a compulsão, a obesidade e sua relação com a morte do companheiro. O luto persiste no quarto do casal intocado, no retrato escondido do casal, em não conseguir falar sobre isso sem chegar as lágrimas e a saudade. Tudo isso expressa um desejo de ser companheiro e amante que Charlie deixou de sustentar.

Salvação, culpa, abandono e luto. Não posso afirmar que a obesidade é a questão mais importante abordada neste filme. Charlie chega ao limite por sofrer. Não supera. Mas como tantos de nós acompanha a vida pela tela da televisão, diverte-se e trabalha por meio do computador e estabelece uma relação com a natureza pela janela. A compulsão por comida é constituinte da dinâmica psicológica de Charlie, a qual temos poucos elementos para precisar. Mas sabemos que diante de sua carreira, de sua paternidade e amizade não põe perspectivas suficientes para viver além do que vive.

A situação apresentada pelo filme e levemente tangenciada por aspectos sociológicos. Enquanto Charlie não quer ir ao hospital por conta das dívidas e por não ter seguro de saúde, a prévia das eleições presidenciais estão ocorrendo. Ao mesmo tempo, certa perspectiva antropológica da condição alimentar da maioria dos estadunidenses é apresentada pelo balde de frango frito, sanduíche de almondega com queijo extra, pizza e refrigerante. O radicalismo religioso de onde Allan é oriundo e ao qual não conseguiu superar. O preconceito quanto a sexualidade deles que fundamenta a atitude do pai de Allan e da ex-esposa de Charlie afastando-o da filha. Estes dois fatos foram determinantes para compor o sofrimento de Charlie. O sofrimento e a morte traumática de Allan, que tinha seus próprios impasses, foi o acontecimento que ancorou Charlie no passado e de onde não mais saiu. Não era mais o seu futuro que dava sentido a Charlie, mas o futuro de Ellie. A cena que a compulsão é apresentada em sua forma mais intensa, quando come duas pizzas e outras coisas ao mesmo tempo até o vômito, revelando certo desespero, não pela sua morte, parece ser por Ellie. A conversa com sua ex-esposa Mari, não foi promissora no sentido de dar a Ellie perspectivas de ser: seria cruel, teria uma vida indecente, não teria ninguém por ela? Apegou-se durante anos a uma redação a qual interpretou como Ellie expressando a verdade, uma vida melhor do que a triste vida dos personagens de Moby Dick. Era o que ele pretendia ensinar aos seus alunos, terem seus próprios argumentos e serem honestos, até mesmo nos últimos dias de sua vida.

Por fim, espera que Ellie poderá ligar-se aos outros, pois acredita que ela pretendeu ajudar o jovem ao contactar a família dele e revelar a eles as contradições que confessou a ela. O jovem foi perdoado. No entanto Charlie não se vê, em nenhum momento do filme, no futuro da filha. Desespera-se e a compulsão toma sua forma mais agressiva. Entretanto, deve haver uma dinâmica psicológica anterior a compulsão alimentar. Ela é sugerida pela imagem mental de Charlie, Mari e Ellie aos 8 anos na praia, distantes um do outro. Que forma um contraponto com duas imagens de Charlie e Allan, pousando juntos para a foto.

Não quer que haja vida após a morte pois não quer que Allan veja o que fez de si mesmo, é o que diz a Thomas. O que fez de si mesmo, admite várias vezes. Entretanto, saber disso não foi suficiente para que não fizesse. Admite que a compulsão é um gesto em que se machuca, se aniquila, se anula. A obesidade não é doença. Ser gordo não era o problema. Mas, tirar de si mesmo suas próprias perspectivas para existir, sustentando que precisaria ser tudo para Allan ou não ser nada, esta sim, a meu ver, era a questão problema.

O filme termina lindamente e nos deixa a mensagem de que sempre é tempo de transcender uma situação dada para uma outra, um encontro com o outro, uma superação.

Obs.: este texto foi produzido para o debate realizado no cine clube do sebo e livraria Humana.

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