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O trabalho feminino: libertação ou opressão?

Atualizado: 13 de abr. de 2024


Somente nesta pergunta temos quatro conceitos importantes, e portanto cabe-nos entender o que é o trabalho, o feminino, a libertação e a opressão. Afinal, como poderíamos nos posicionar se o trabalho feminino liberta ou oprime se não entendermos o significado de cada palavra desta? Em outros textos aqui do blog discutimos o trabalho, então, neste singelo ensaio, nos ateremos a concepção de feminino.

A ideia de feminino parece-nos uma concepção opressora por si mesma, pois respalda a concepção de que a divisão do trabalho é definida pela condição inata ou inerente às mulheres de serem femininas, isto é, mães, delicadas, pacientes, passivas... o que leva a profissões consideradas socialmente como femininas, aquelas que envolvem o cuidado, tais como, professoras de educação infantil, enfermeiras, cozinheiras, faxineiras etc. Essa concepção do trabalho feminino escamoteia justamente a opressão, essencializando o feminino.

A famosa feminista, Simone de Beauvoir (1908-1986) que escreveu em sua época o polêmico livro O segundo sexo, contrapõe-se a essencialização do feminino quando afirma que "não se nasce mulher, faz-se mulher". Neste sentido, se no campo social as mulheres destacam-se por serem femininas é porque assim se fizeram historicamente e não porque nasceram assim. Lanço aqui outro jargão existencialista "a existência precede a essência". Primeiro nascemos, temos nossas vivências em certa cultura, sociedade e família e assim vamos nos constituindo como personalidades ou, melhor dizendo, nos personalizamos.

Ainda na perspectiva do problematização da concepção de feminino e sua potencialidade opressora propomos a comparação entre dois quadros pintados no século XIX, quando a sociedade industrias nascia mas o trabalho no campo ainda era predominante.

Qual dos quadros expressa a concepção de feminino? Candura, doçura, beleza etc. Será que podemos entender que estas qualidades referidas as mulheres correspondem ao ser de classe das mulheres abastadas? A meu ver é isso mesmo. A essência de feminino corresponde a valores que as mulheres devem adotar e o exemplo de mulher que os adotam são aquelas das classes dominantes. O quadro das mulheres catadoras, que estão trabalhando no campo, não as mostra, seus rostos, suas identidades, apenas sua invisibilidade. O quadro das duas irmãs, as mostra plenas, em sua individualidade, contemplando, pousando em sua leveza, elas sim, expressam a concepção de feminino a ser eleita. Entretanto, as trabalhadoras do campo pintadas por Millet possuem ou não seu ser feminino? Vejam o que Cora Coralina (1889-1995), a trabalhadora da poesia nos revela sobre isso.

Todas as Vidas de Cora Coralina

Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando para o fogo. Benze quebranto. Bota feitiço... Ogum. Orixá. Macumba, terreiro. Ogã, pai-de-santo... Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho. Seu cheiro gostoso d´água e sabão. Rodilha de pano. Trouxa de roupa, pedra de anil. Sua coroa verde de São-caetano. Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal. Vive dentro de mim a mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada. Vive dentro de mim a mulher roceira. -Enxerto de terra, Trabalhadeira. Madrugadeira. Analfabeta. De pé no chão. Bem parideira. Bem criadeira. Seus doze filhos, Seus vinte netos. Vive dentro de mim a mulher da vida. Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada... Fingindo ser alegre seu triste fado. Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida - a vida mera das obscuras!

No poema as imagens traduzem vidas de mulheres trabalhadoras e do povo, referências ao modo de ser e de viver delas. Quando a essencialização não funciona como argumento para justificar o lugar social das mulheres procura-se sustentar a concepção desta essência inata ao biológico, o que não servia para as lavradoras, operárias etc, a não ser que elas deveriam manter-se em atividades menos qualificadas e remuneradas. A história nos mostra que as primeiras indústrias foram sustentandas pelo trabalho de famílias inteiras, sem nenhum direito, vivam nas fábricas ou nos arredores das cidades em condições extremamente precárias. E as atividades laboras menos qualificadas eram destinadas as crianças e as mulheres, que adoeciam, se acidentavam e morriam. A saúde pública e a preocupação com a saúde de quem trabalha surgiu, inclusive neste contexto.

Pode-se afirmar que esta condição histórica foi superada. E foi mesmo, de certa forma, mas a partir das organizações e lutas empregadas por trabalhadoras e trabalhadores. Entretanto a essencialização continua e respaldada em diferenças biológicas entre homens e mulheres e isto alimenta muitas incompreensões sobre as questões de gênero. No caso específico do trabalho, "homens e mulheres assumem diferentes atividades sob a justificativa de serem biologicamente mais adequados para determinadas tarefas e não outras. Esta divisão baseia-se na concepção de que a diferença biológica dos sexos masculino e feminino representaria também uma diferença de qualidades, habilidades e características que homens e mulheres carregariam naturalmente em seus corpos". (Daniel, 2011)

O fato é que seja em que período histórico for as mulheres sempre trabalharam. Em algum momento, período diferente em cada nação, passaram a estudar e ser lideranças, não somente auxiliares dos homens. Neste sentido, o trabalho é uma libertação, quando possibilitou às mulheres libertarem-se do jugo masculino sobre elas. Entretanto, o trabalho é uma atividade que pode libertar em certa perspectiva mas, como classe social, as pessoas que trabalham estão oprimidas.

Vejamos algumas das dificuldades que a concepção de feminino como essência impõe, apontadas por Daniel em seu artigo:

- Nas profissões, postos, cargos e espaços de trabalho, homens e mulheres (re) constroem noções que alimentam a idéia de que existem papéis diferentes, “masculinos” e “femininos", o que dificulta o relacionamento no campo do trabalho no que se refere a diversidade de gênero;

- sexualização do local e da relação de trabalho; exigir das mulheres a execução de tarefas mais complexas; penalizar as mulheres por pequenos erros que, se fossem cometidos por homens seriam dificilmente repreendidos; esperar das mulheres um comportamento dócil, sociável e afetivo, o que envolve permissividade em assediar e pressionar as mulheres nas organizações de trabalho;

- no ambiente de trabalho mulheres e homens tendem a reproduzir lugares socialmente reconhecidos como femininos, com a reprodução do papel feminino tradicional no ambiente masculino de trabalho, afirmando assim a divisão de trabalho a partir da concepção de feminino; - as mulheres estão mais expostas a sanções informais, como brincadeiras, piadas, fofocas e cantadas, estratégias que marcam principalmente a experiência de mulheres que ingressam em profissões tradicionalmente masculinas, mais uma vez a exemplificação do assédio;

- em ambientes masculinos ou diante de cargos socialmente destinado a homens as mulheres constroem estratégias: adotam o lugar de feminino; opõe-se ao lugar destinado mediante a concepção naturalizante de feminino; assumem cargos médios para conciliarem trabalho e família; levam colegas ou sócios homens nas reuniões onde o masculino predomina;

- as exigências sociais na conciliação entre os cuidados familiares, ser mãe e trabalho.

Esse copilado dos resultados da pesquisa de Daniel (2011) pode nos auxiliar na reflexão sobre a conceção de feminino essencializada e biologicizada e no que ela implica em conflitos entre as pessoas. Sabemos, no entanto, que "A entrada de mulheres em profissões, cargos e espaços de trabalho, que anteriormente eram ocupados apenas por homens, abre a possibilidade para que os indivíduos envolvidos se questionem sobre a validade de um modelo de divisão sexual do trabalho calcado em habilidades ditas naturais." (Daniel, 2011) E isso é muito importante, porque as mulheres hoje querem expressar a liberdade em suas escolhas em relação ao trabalho, ao próprio corpo e modo de viver.

Cora Coralina, em“Poema dos becos de Goiás e estórias mais”. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965.

Camila Daniel, O trabalho e a questão de gênero: a participação de mulheres na dinâmica do trabalho. O Social em Questão - Ano XIV - nº 25/26 – 2011.

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