A compreensão no processo psicoterapêutico existencialista
- Andréa Luiza da Silveira
- 31 de jan. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 3 de mar.

Há uma experiência decorrente do processo psicoterapêutico que denominamos compreensão. Essa experiência resultante das descrições e técnicas propostas em função da problemática apresentada pelo(a) cliente ocorrem desde o início do processo psicoterapêutico. E, provavelmente é ainda mais significativa no início, pois trata-se de um período em que a pessoa está, geralmente, em grande sofrimento.
O processo psicoterapêutico parte das demandas, isto é, das queixas que as pessoas expressam na primeira sessão. Descrevemos as queixas estimulando a localização do cliente diante de sua situação. A psicologia tem sua própria concepção sobre o ser-humano, o mundo e a história. O(a) psicólogo(a) tem domínio sobre fundamentos epistemológicos e ontológicos dos conceitos e mobiliza-os para conduzir as descrições e análises de situações chave. Desta maneira, promove as condições de possibilidade para que o (a) cliente observe as situações vivenciadas, analise-as e compreenda seus posicionamentos.
As vivências tornam-se presentes sendo experimentadas como determinação, sobretudo em personalizações cujos estados afetivos são qualificados como psicopatologias (ansiedade, depressão, transtorno obsessivo compulsivo etc.). É a força do passado sobre o presente.
O passado não determina o futuro, mas ele pode ser experimentado como determinante. Por isso, as descrições partem da contextualização das demandas na historicidade do(a) cliente e são fundamentais para compreender-se como habitos, pensamentos e emoções foram se constituindo ao longo do tempo e tornaram-se recorrentes. A compreensão deste movimento constitivo do sofrimento psíquico viabilizará que o(a) cliente compreenda o que depende de si mesmo e aquilo que concerne aos outros e ao próprio cenário social e histórico. Esta localização amplia as possibilidades de agir e experimentar a própria segurança de ser.
Como psicoterapeuta prefiro não utilizar contextos clínicos como exemplo, mesmo que inventados. Optei por fazer uma breve análise de papel da personagem Lóri do livro Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres de autoria de Clarice Lispector.
Lóri perde a mãe quando criança, criada pelo pai é a única filha entre três irmãos. Foi educada numa cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro, na década de 50/60. Ao tornar-se uma jovem adulta, migra para a capital carioca em apartamento próprio adquirido com a ajuda do pai. Passa a trabalhar como professora de educação infantil e procura ter autonomia. Ela é bem quista na escola onde trabalha e é apreciada pelas crianças. É uma mulher bem cuidada, frequenta eventos sociais e possui uma vida amorosa e sexual. No entanto não se realiza nestas dimensões de sua existência. Em suas incursões solitárias encontra Ulisses, um professor universitário de filosofia, seu único interlocutor. Ele estimula-a a falar sobre si e ela conta a ele: Meu mistério é simples, eu não sei como estar viva. Ao que ele rebate dizendo: - É que você só sabe, ou só sabia, estar viva através da dor. A angústia, o desespero e o desamparo são vividos pela personagem que possui Ulisses como única mediação para refletir sobre a vida. Ela deseja aprender a viver.
Lóri compreende inicialmente que não consegue afetar-se pelo mundo e pelos outros. A perda da mãe deixou-lhe sem amor. Não havia laços amorosos entre ela e o pai e os irmãos. Não teve amigos(as) significantes e seus amantes eram casuais e ela não lhes dava importância. Não queria casar-se para cumprir uma função social e não tinha outra perspectiva. Afasta-se das cobranças deste tipo mudando-se de sua pequena cidade. Ulisses media as reflexões sobre o que lhe acontece, mostra-lhe como é existir e que o amor é uma possibilidade. O livro dos prazeres assinala como a personagem Lóri passa a se afetar positivamente e sentir prazer. Ela se localiza em seu desamparo e escolhe dar sentido a sua vida. Situa-se perante o medo e a vergonha. Arrisca-se e supera no melhor possível do que lhe permite a condição humana, isto é, a própria realidade.
São muitas as situações de sofrimento vividas por Lóri, desde acordar de madrugada sem conseguir dormir até ficar frente ao telefone pensando sobre telefonar para Ulisses ou ir a um encontro entre colegas. Ela comprendeu que sua dor era permeada pelo desespero diante da responsabilidade sobre fazer algo de si mesma, pois somente ela poderia dar sentido a vida.
Ela compartilhava suas experimentações com Ulisses. Decidiu que queria viver: A vida era tão forte que se amparava no próprio desamparo. De estar viva – sentiu ela – teria de agora em diante, que fazer o seu motivo e tema. Eis que Lóri modifica-se ao dar-se um futuro. Além da dor passa a experimentar a alegrias do mundo, viver no mundo, admitir ser no mundo. Agora é que ela notava tudo isso. Era uma iniciada no mundo.
Este livro de Clarice Lispector é conhecido por iniciar com uma vírgula e terminar com dois pontos, indicando a personagem Lóri em sua historicidade, temporalizando-se numa história que se desenvolve e não termina. Também assim é um processo psicoterapêutico, em que a historicidade do (a) cliente está em curso. Outro ponto de similitude são as experimentações narradas por Lóri da dor mas também da compreensão sobre ela e sobre o que deseja decorrendo em segurança de ser no mundo, entendendo igualmente, sua função social, neste caso, uma mulher de classe média em sua liberdade que afronta a sociedade burguesa conservadora apenas por existir.
Obs.: MULHER no Espelho. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra10439/mulher-no-espelho>. Acesso em: 31 de Jan. 2020. Verbete da Enciclopédia.ISBN: 978-85-7979-060-7