O processo psicoterapêutico ocorre a partir de um vínculo entre cliente e psicoterapeuta, o que envolve uma relação com o outro. Porém com uma importante especificidade, porque é mediada pelo conhecimento psicológico. No nosso caso, a compreensão do que constitui o psicológico é fundamental, isto é, o vivido pelo(a) cliente, que corresponde a sua bagagem histórica e social experimentada em certas situações. Mas o sentido de tal processo é o encontro da pessoa consigo própria, sentindo-se segura ao vivenciar-se junto com os outros no mundo.
A expressão ser no mundo, tão cara a uma perspectiva existencial da realidade trata-se simplesmente de compreender que estamos aí no mundo. Mas, os outros também estão, com seus valores e dramas - como expressa o quadro de Tarsila do Amaral, Operários (1933) que revela as diferenças entre pessoas que se encontram para trabalhar em certos contextos. Para viver no mundo cabe-nos fazê-lo junto com as outras pessoas. Por isso, justamente, a experiência de solidão é tão sofrida.
Não temos como estar no mundo sem os outros, mas podemos escolher a formar como iremos nos relacionar seja com colegas de trabalho, além de pessoas com quem convivemos em outras instituições que possamos participar, seja no relacionamento amoroso, com amigos e familiares. Costumamos utilizar palavras para situar-nos nestas relações, que geralmente, implicam certas práticas ou comportamentos. Podemos citar aqui alguns valores: respeito, empatia, além de desrespeito, crueldade, ignorância. Expressamos estes valores e tantos outros por meio do que pensamos e fazemos, sempre, é claro, num certo contexto situado no tempo e no espaço.
Uma jovem atualmente age de modo bastante diferente de uma jovem que viveu há 200 anos. Eram outros tempos, muitos diriam. E de fato, é isso mesmo. Outros tempos, outra organização social. Há 200 anos o recato de uma jovem se expressava em estar calada, bordando em uma sala, enquanto os homens conversavam. Atualmente, o que era valorizado como recato e como um comportamento desejável, poderia ser considerado estranho, muito provavelmente pela própria jovem que não admitiria que lhe impusessem o silêncio. Portanto, havia possibilidades de ser no mundo para uma jovem há 200 anos tanto quanto existem possibilidades hoje. De qualquer modo, se uma pessoa torna-se tímida ou expansiva, insegura ou segura, grosseira ou gentil, assim como tantos outros aspectos de sua personalidade, constitui-se mediante a relação com outros que viabilizaram ou inviabilizaram seu modo de ser no mundo.
A constituição de nossa personalidade é mediada pela forma como estabelecemos a relação com os outros, desde bebês até a velhice. E também, do estímulo que recebemos para fazermos uma reflexão sobre o que fazemos, quem somos e o que queremos. Neste sentido, o encontro consigo mesmo mediado por uma psicoterapia deverá ocorrer ao mesmo tempo em que damos novos sentidos a forma como nos relacionamos com os outros. Por meio da reflexão passamos a conhecer como nos tornamos a pessoa que somos e, ao mesmo tempo, como mudamos e como poderemos mudar.
Depois deste breve texto, se o(a) leitor(a) chegou até aqui e se interessou, incentivo que leia outros textos do blog, comente, faça sugestões e quem sabe ouça uma música de Belchior, cujo link deixo a disposição abaixo. Tais músicas fizeram parte de minha infância, já que estamos aqui pensando sobre a mediação dos outros na nossa vida. E hoje, adulta, as descobri novamente, muitos anos depois de tê-las ouvido pela primeira vez. E assim, um poema, uma música, um romance, um cheiro, um gosto, imagem ou som fazem parte da nossa história, da nossa memória, de nossas lembranças e, às vezes, atravessam nosso futuro quando nos inspiram e fortalecem.
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Mas eu não estou interessado Em nenhuma teoria Em nenhuma fantasia Nem no algo mais Longe o profeta do terror Que a laranja mecânica anuncia Amar e mudar as coisas Me interessa mais Amar e mudar as coisas Amar e mudar as coisas Me interessa mais
(Belchior, 1976) https://www.youtube.com/watch?v=9K3Wj5BZBF4