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Foto do escritorAndréa Luiza da Silveira

Angústia e liberdade na psicoterapia existencialista

Atualizado: 22 de mai. de 2020


A Boba (Anita Malfatti, 1915)

No consultório psicológico contamos nossas histórias! Nelas sempre há, pelo menos, uma situação em que certos impasses se iniciaram. Não é tarefa fácil para paciente e profissional resgatarem a trama do tempo passado para dar um sentido novo, se não para a vida, para dimensões dela. Mas, fazer uma psicoterapia exige resgatar o passado para que logo se realize a superação. A questão é por que a superação é possível? Porque somos livres, porque além de sermos nossa história, somos também nosso futuro.

O círculo repetitivo de algumas situações envolve a todos nós em dadas circunstâncias. Estamos lá, e tudo acontece mais uma vez, não de forma igual, mas pode ser semelhante em alguns aspectos. Se neste ciclo muitas coisas são realizadoras: esforcei-me e recebi um prêmio na escola, passei no vestibular, consegui um bom estágio depois de algumas tentativas etc., então, tudo vai bem!

Nossas expectativas tendem a ser confiante no caso do circuito da vida ocorrer como movimentos de experiência de realização. Agimos, então, com maior segurança: acertarei os passos e chegarei onde quero. A cada conquista a experiência de realização é vivenciada e reconsideramos as dificuldades como superações. Mas, quando os acontecimentos abalam cada vez mais profundamente, mais difícil vai ficando. A insegurança pode ser constituída: acho que não conseguirei, que não sou bom (a) suficiente. É justamente esse circuito em que a inviabilização é vivenciada que deverá ser rompido num processo psicoterapêutico.

A superação não é um acontecimento, é um processo. Somos livres para continuarmos estudando para o concurso tão concorrido mesmo trabalhando e com pouco tempo: precisarei dormir menos e ocupar mais tempo do lazer com meus estudos, meus amigos convidam para algo, direi não, eles entenderão o porquê? Estou cansado, preciso superar o cansaço para alcançar o que desejo. A questão é: quem serei? Aquele que se dedica para realizar o que deseja? Aquele que sobe a montanha superando a dor nos pés ou que para a beira do caminho e chora maldizendo o dia que decidiu empreender essa subida? Se meu projeto é ser o montanhista subirei a montanha, serei montanhista.

Somos livres, mas os outros também o são. Em todo o tempo histórico houve um presente, no presente há um passado com um por vir. Ao nascermos houve um futuro posto pelos outros, aqueles que estiveram no entorno. Essas mediações que nos constituem ao longo da infância e de toda a vida, os acontecimentos contingentes (a morte de alguém importante, a perda de emprego de um adulto e a mudança de vida, de escola, de bairro, de cidade etc.), os gostos que são apresentados (pela leitura, música, brincadeiras etc) são fundamentais, sobretudo, para o desenvolvimento da criança.

Entretanto, fazemos algo do que os outros fizeram de nós, mesmo que seja admitir todas as determinações: você é uma menina, deve ficar quietinha, como uma menina boazinha; Você é a bonequinha do papai e da mamãe. Eis que na adultez essa mulher tem dificuldade em posicionar-se, em escolher sua própria forma de viver, então, adere aos preceitos paternos, adere aos preceitos de um marido, não precisa mais posicionar-se, escolheu viver à sombra. Se isso se desdobrar em um impasse psicológico terá que voltar a este ciclo e escolher sua liberdade, pois, muito embora não possamos nos escolher não livres podemos negar nossa própria liberdade.

Há grande diferencial da escolha de uma conduta que muda o futuro. Se tomo decisões e não me submeto, eis que me posiciono e digo: não quero fazer isto hoje, quero outra coisa neste momento. Fico feliz. Consegui posicionar-me, tenho valor. Mas, para chegar neste ponto, muitas vezes, exige-se um extenso trabalho psicoterapêutico, pois, ao longo da vida de uma pessoa pode ter ocorrido que seus posicionamentos foram sendo desqualificados, por exemplo, no meio familiar na infância. A insegurança duradoura deve ter feito parte de outras fases da vida.

Os outros são mediações, é certo. As relações sociais e íntimas são fundamentais para nos constituirmos seguros e felizes. Mas, podem também ser relações que intimidam e desestruturam. Vejamos situações de assédio moral no trabalho, por exemplo: cheguei de férias e minha mesa não estava no lugar, nem o restante de meu material de trabalho. Fui ignorado ao solicitar explicações etc. A repetição deste fato, ligado a condição de que essa pessoa necessita do seu trabalho para sustentar seu modo de vida, causa-lhe grande impacto. Questiona seu valor como trabalhador ou trabalhadora, sente-se infeliz. Na atual falta de empregos tem receio de não conseguir vaga para trabalhar em outro lugar e assim por diante. A falta de mediações neste caso, a vivência da solidão, pode ser a experiência do fracasso pessoal. Sem conseguir compreender o contexto, este trabalhador poderá individualizar o problema e experimentar-se em sofrimento psíquico.

Há então o contexto que está além de nós porque os outros também o realizam. A organização na qual trabalhamos tornou-se assediadora. A política do nosso país tornou-se autoritária, violenta e cruel. Quem serei neste contexto, o que é possível? No caso do assédio, o trabalhador recorre as orientações de seu sindicato, obtêm apoio, mediação para decidir suas condutas. Porém, numa sociedade autoritária, não há sindicato, não há a quem recorrer e o trabalhador se vê só diante do assédio. Procurará outro lugar para trabalhar? Admitirá o assédio para manter o salário do qual depende? Alguns dirão: ah... mas essas não são questões de psicoterapia. Esses contextos constituem as histórias pessoais de muitos de nós, por isso são questões que atravessam uma psicoterapia.

A liberdade inerente às condutas estão sempre ligadas as outras pessoas, a um lugar (trabalho, comunidade etc.) e ao que queremos de um modo de viver, isto é, nosso futuro. Neste ponto reside uma forte característica da psicologia com a qual trabalhamos.

Nem poetas, nem loucos. A liberdade, como tema de conversação e até mesmo de considerações mais formais, é relacionada a poesia, a loucura, a momentos de êxtase. Mas, a vivência da liberdade é bem mais comum, não é um êxtase raro experimentado por pessoas especiais. Todos nós experimentamos a liberdade quando nos angustiamos.

A pergunta que repetimos nesta breve texto revela a angústia: quem serei? Essa é a angústia, frente a si mesmo. Escolhemos ser em certo contexto, é verdade, mas se estou nele também sobre ele tenho responsabilidade. Fazer uma psicoterapia viabiliza um futuro, mas não sem vivenciar a liberdade.

Finalizamos com o poema de Mário de Andrade, aí sim, para livre reflexão.

Será que a liberdade é uma bobagem?... Será que o direito é uma bobagem?... A vida humana é alguma coisa a mais que ciências, artes e profissões. E é nessa vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos homens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que há de vir.

Mário de Andrade

Obs.: Quadro que referencia a Semana de Arte Moderna, A Boba de Anita Malfatti – 1915/1916.

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